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1.“O poder não se toma, se constrói.” A frase, muito ouvida em debates de intelectuais petistas nos anos 1980 e 1990, é citada num trecho de “PT, uma história”, do sociólogo Celso Rocha de Barros, que comecei a ler na semana anterior ao segundo turno (Companhia das Letras, 488 págs.).
Difícil não pensar nela depois da vitória de Lula, quando vimos uma espécie de apocalipse cognitivo em protestos nas estradas, nas cidades. Um grupo chora e canta para comemorar a suposta prisão de Alexandre de Moraes. Uma evangélica reza ao saber que foi decretado o Estado de Defesa. Nada disso teria chance de ocorrer num ambiente conservador quinze, talvez dez anos atrás – não com personagens usando essa linguagem, mostrando essa percepção da realidade.
Como surgiu o atual extremismo? Há explicações para todo gosto, indo do marxismo ortodoxo (que falará das crises econômicas, dos paradoxos do capitalismo tardio que criou a internet) ao tecnicismo psicologizante (para quem o vilão é apenas o WhatsApp ou o TikTok, com seus efeitos histéricos que independem de contexto).
O mais provável é que a resposta seja mista: há razões estruturais para a descrença nas instituições representativas, mas também certa aleatoriedade no ambiente onde ela se expressa – uma forma de comunicação inédita, que obedece a lógicas às vezes imprevistas até por quem projeta algoritmos e plataformas.
De um modo ou de outro, o resultado é um fato político incontornável: na clássica definição de Hannah Arendt, o debate público foi em boa parte sequestrado pela ralé – os refugos de diferentes classes que rejeitam a democracia, substituindo-a por uma utopia reacionária gerida por estímulos emocionais incessantes.
Para furar essa bolha o mero resultado econômico talvez não baste – até porque porcentagens em índices abstratos, como costumam ser os da área em épocas não tão miseráveis nem tão abundantes, dependem de narrativas que as embalem para o público leigo.
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2. Resta então o campo de batalha cultural, no sentido amplo do termo. É disso que fala o livro de Rocha de Barros, a partir de um levantamento minucioso de dados técnicos e informações conjunturais. Porque a história do PT, do início nos estertores da ditadura até os piores momentos entre 2013 e 2022, confunde-se com a formação da sociedade civil como a conhecemos na Nova República. Sem o trabalho miúdo de conscientização, que uniu setores como sindicatos, esquerda religiosa, movimentos sociais e classe média instruída, não haveria a mudança de condições para que um operário chegasse três vezes à presidência num país autoritário e injusto.
Para além das alianças táticas da política stricto sensu, a construção do poder nas democracias é – ou deveria ser – um processo orgânico, que se alimenta dos consensos possíveis na base. Rocha de Barros mostra como o PT conseguiu jogar esse jogo com acertos e erros, entre debates ricos e às vezes bizantinos sobre a própria identidade, mantendo-se atento a questões nascidas na vivência da militância, no contato com uma realidade distante dos gabinetes.
Foi assim que o partido conseguiu sobreviver ao mensalão, ao petrolão, à derrubada de Dilma e à prisão sem provas de Lula. Ou atraiu para si os movimentos de minorias que atualizaram o debate brasileiro. Com todos os desvios que pegou quando esteve no poder, deixando-se cooptar pelo pior do sistema político, houve sempre esse escape via “democracia por baixo”: a militância do partido nunca perdeu de vista o que era, ou chegou a ser um dia, na luta feita independentemente de estar ou não à frente do Estado.
Escrito com verve e honestidade, cheio de trechos curiosos e engraçados, “PT, uma história” defende a ideia – formulada como hipótese, confirmada com os primeiros
acenos pós-vitória nas urnas – de que o novo mandato será pautado por uma ironia: diante do esfacelamento do centro, que poderia servir de anteparo no processo, o partido não tem como evitar a aproximação com a direita e seus setores mais duros, incluindo aí as forças de segurança.
É o tipo de acordo recusado nos anos 1980, quando o desgaste de ser vidraça na transição do fim da ditadura ficou para o PMDB de Tancredo e Ulysses. No curto prazo de 2022, a “democracia por cima” é a saída para atravessar os tumultos fomentados por Bolsonaro. No longo, como manter a base mobilizada caso o PT vire um simulacro de PSDB, de PL?
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3. Um dos desafios da esquerda hoje é entender as mudanças no espaço público, no que se aprendeu a enxergar como sociedade civil. Quando trata do debate cidadania versus ascensão pelo consumo, por exemplo, Rocha de Barros acerta ao lembrar das conclusões de uma pesquisa das antropólogas Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Scalco: há um tipo de emancipação simbólica, e não apenas ganho material, quando os pobres conseguem comprar uma passagem aérea, frequentar lugares antes restritos a outras classes.
Só que a mesma sensação de pertencimento, agora por mecanismos perversos, é o combustível de quem nunca teve voz, nunca entendeu a complexidade do Estado de direito, mas passou a ter opiniões avalizadas por um oceano de likes. A ralé com um celular na mão tem o poder de abreviar os tempos da política, formando de modo imediato consensos que as antigas organizações de base levavam anos, décadas para alcançar.
Sem jogar esse novo jogo, usando o ambiente digital para enfrentar o bolsonarismo em seus próprios termos, a democracia seguirá dependendo do acaso para não sucumbir – na última eleição foi por apenas 2 milhões de votos, que podem ter sido decididos por memes envolvendo canibalismo e pedofilia. Politizar a cidadania, como defendem os críticos do modelo “picanha e cerveja”, também é entender a dinâmica de um debate que se deformou.
Claro que há riscos na manobra. O histrionismo de André Janones, que teve papel importante no triunfo de Lula, não deixa de ser uma adesão à mentalidade da ralé. Promovê-la acriticamente é abrir mão de uma identidade duramente constituída –
sem a qual, também é certo, o PT não teria derrotado a máquina de mentiras e dinheiro público acionada às vésperas do pleito.
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4. Há um equilíbrio difícil entre tática e estratégia, linguagem rebaixada das redes e o horizonte do que Gramsci chamava de “grande política”. Achá-lo é a tarefa prioritária não só do PT, mas de qualquer partido ou movimento democrático. Se apenas avanço educacional e material fossem antídotos contra o extremismo, não teríamos visto o que ocorreu em países como Inglaterra e Estados Unidos – ou em lugares como Santa Catarina e o interior de São Paulo.
Ao mesmo tempo, a democracia só vai sobreviver se dialogar com a vida concreta das pessoas. Por mais amplo que seja, um acordo também é qualificado por aquilo que permanece inegociável: por trás da espuma, da sujeira que respinga nos ombros de quem enfrentou e venceu a besta, há um imenso trabalho a fazer nas áreas onde um governo mostra a sua face verdadeira – da saúde às escolas, do combate à desigualdade ao cuidado com o meio ambiente.
Em vários trechos do seu livro, Rocha de Barros mostra que o PT poderia ter dado errado, e que muito na sua trajetória também foi fruto de sorte histórica. Mais de 40 anos depois da fundação do partido, torçamos para estar vivendo outro momento assim: a chance de unir por cima e por baixo as forças que salvarão o futuro. (Do Blog Cidadania & Cultura)
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