Reprodução
Da Isto É
Bolsonaro achou que tinha conseguido se blindar ao patrocinar a eleição da atual direção do Congresso. Para ele, o escandaloso balcão de negócios com emendas e cargos que bancou no Legislativo afastaria a ameaça de impeachment pelos crimes de responsabilidade em série que cometeu. Era uma ilusão. Menos de dois meses depois, vive um choque de realidade. A abertura da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, na última terça-feira, 13, deve expor publicamente, em detalhes, todas as ações irresponsáveis que levaram o Brasil a se tornar o epicentro da pandemia no mundo, com 370 mil óbitos — quase 4 mil por dia. Há muitas dúvidas sobre a efetividade da CPI, e várias tiveram resultados pífios mesmo lidando com temas sensíveis. Mas o grau de nervosismo do presidente e a gravidade da crise política, sanitária e econômica evidenciam que ela pode mudar o curso do governo Bolsonaro.
A instalação da CPI no Senado mostrou que o controle democrático entre os Poderes está funcionando. Amparado no parágrafo terceiro do artigo 58 da Constituição, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, determinou que a comissão de investigação fosse criada no Senado, já que todos os requisitos foram preenchidos (assinatura de pelo menos um terço dos membros da Casa, fato determinante e prazo determinado). O pedido foi protocolado pelo senador Randolfe Rodrigues, da Rede, em fevereiro. Seguindo jurisprudência do STF, Barroso assegurou o direito da minoria parlamentar. Isso já tinha acontecido em outras ocasiões, como na CPI dos Bingos, em 2005, na do Apagão Aéreo (na Câmara), em 2007, e na da Petrobras, em 2014. “Proteger a democracia e os direitos fundamentais é imprescindível ato de resistência democrática”, disse Barroso na sessão do Plenário que referendou sua decisão, um dia depois, por 10 votos a 1 (até o ministro Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, votou com Barroso).
Assustado, Bolsonaro fez tudo o que podia para impedir a criação da comissão. Por meio de um confuso diálogo gravado e divulgado por um aliado, o senador Jorge Kajuru, o mandatário tentou sugerir que governadores também fossem investigados e que o Congresso desse sequência ao impeachment de ministros do STF, incluindo o próprio Barroso. É um despropósito, já que são processos de natureza distinta. Mesmo assim, Bolsonaro comemorou com apoiadores ao ouvir, na segunda-feira, que Nunes Marques tinha sido sorteado para relatar um pedido de impeachment contra o ministro Alexandre de Moraes. Tentando interferir no Legislativo e fazendo essa ameaça, o presidente retomou a mesma tática que usa sempre que está em situação desfavorável: ataca os outros Poderes, tenta transferir aos adversários as suas próprias responsabilidades e mobiliza seus seguidores nas redes. O próprio papel de Kajuru, ao servir de instrumento para uma encenação destinada a pressionar o STF, foi lamentável e mostra a forma indevida de Bolsonaro agir e sua falta de respeito institucional. Ao lado do senador Alessandro Vieira, Kajuru era um dos autores do mandado de segurança que levou à decisão de Barroso. Foi convidado a se retirar do seu próprio partido, o Cidadania.
Porém, a pressão de Bolsonaro valeu para mobilizar aliados no Senado a apresentarem um segundo pedido de CPI, mirando também governadores e prefeitos. Rodrigo Pacheco ficou satisfeito com a manobra, e ampliou o escopo da CPI original, que também vai investigar verbas federais destinadas aos estados e municípios, apesar do parecer contrário da Secretaria-Geral do Senado (as Assembleias estaduais e as Câmaras municipais têm a prerrogativa de investigar governadores e prefeitos). Esse é um dos riscos para a investigação. Como aconteceu na CPMI das Fake News, os bolsonaristas podem aproveitar para saturar as investigações com dados diversionistas e para mirar os desafetos do presidente, evitando que o relatório final produza respostas conclusivas ou consequências práticas. O próprio autor do pedido de CPI, no entanto, não acredita que esse embuste prospere. “Quem se afundar em alguma operação abafa ou passar a mão na cabeça desse genocídio não será perdoado pela sociedade brasileira. Nem a curto prazo, nem na história”, disse Randolfe Rodrigues à ISTOÉ.
Manobras fracassadas
Outro ardil foi ensaiado pelo líder do governo no Congresso, o senador Eduardo Gomes. Ele defendeu que a instalação só ocorresse quando “servidores, senadores e repórteres” estivessem vacinados. É uma ironia, já que a CPI deve investigar exatamente a falta desses insumos, causados pelo governo federal. Nesse caso, seguindo a lógica do emedebista do Tocantins, bastaria ao governo paralisar de vez a vacinação para impedir os trabalhos de investigação. Foi derrotado. A investida de Bolsonaro contra o STF também fracassou. O presidente do Senado disse que não pautará nenhuma abertura de impeachment contra membros do STF, o que certamente abriria uma crise institucional. Para Pacheco, pedidos de impeachment “não podem ser banalizados em atos de revanchismo ou retaliação”. O governo está especialmente preocupado com a composição da CPI, que terá minoria governista (apenas 4 em 11 nomes). Randolfe vai integrar a CPI e esperava, até a última quinta-feira, assumir a presidência.
Acima de tudo, espera-se que a CPI consiga reverter, o mais rapidamente possível, a trajetória negacionista e negligente do presidente. É preciso conter a tragédia humanitária que, até o momento, está fora de controle e tem colocado o Brasil, cumprindo a profecia do ex-chanceler Ernesto Araújo, como um pária internacional. Essa imagem negativa ganhou um novo capítulo no dia 14, na Assembleia Nacional da França, quando o primeiro-ministro, Jean Castex, anunciou a suspensão de voos entre os dois países e lembrou que o Brasil é a nação que mais prescreveu hidroxicloroquina, ao rebater um adversário.
O deboche internacional não intimida bolsonaristas como Onyx Lorenzoni, ministro da Secretaria-Geral da Presidência, que tuitou o vídeo de uma mulher que havia recebido um tratamento experimental baseado no medicamento, como prova de sua eficácia. Foi uma indignidade que mostra a irresponsabilidade com que os aliados do presidente agem. Ela havia morrido 18 dias antes do vídeo ser usado como peça de propaganda. Apenas cinco países aceitam brasileiros atualmente. Um estudo detalhado publicado na prestigiada revista “Science” mostrou que o governo federal é o maior culpado pelos erros na pandemia, por meio de suas falhas e omissões e pela polarização ideológica. Em reunião do Parlamento Europeu na última quinta-feira, a deputada alemã Anna Cavazzini responsabilizou Bolsonaro pela crise no País e alertou que a situação é desastrosa. “O Brasil caminha rumo ao precipício de olhos bem abertos”, disse.
Nenhum comentário:
Postar um comentário