Bolsonaro não construiu qualquer doutrina, nem formulou o que seja que se possa assemelhar a um programa com meio e fim claros. Seu discurso é um amontoado de sandices. O mérito do capitão está em de haver identificado entre nós uma corrente de pensamento (ou simplesmente sentimentos) reacionária, ultraconservadora, inteiramente à mingua de representação e liderança. Neste sentido, ele responde a uma necessidade social, cuja existência não nos fôra dado perceber quando a serpente era apenas um ovo por ser eclodido, ludibriados que fomos pelos nossos feitos eleitorais, que nada diziam respeito à consagração de nossas ideias, pois simplesmente refletiam o prestígio de então de um líder de massas carismático.
Nos EUA, a questão central não é Trump, uma página virada na política eleitoral do império. O que importa, na análise, é considerar o espírito que estava por trás dos vândalos do capitólio e que, antes, assegurara a histórica votação do quase ex-presidente. [Embora derrotado, por pequena margem de votos, aliás, Trump sagrou-se o 2º presidenciável mais votado da história dos EUA; esses dados devem ser lidos como sinal de que a radicalização seguirá por um bom tempo.) Este espírito persiste como ameaça ao futuro governo Biden, e pode mesmo pôr em risco a estabilidade institucional da maior potência nuclear do mundo dilacerada em suas entranhas por um conflito etnoracialsocial sem esperança.
O trumpismo não foi obra mercadológica de Donald Trump. Coube-lhe dar voz e expressão ao que de mais atrasado sobrevive, forte, na sociedade americana, e que se reflete em sua divisão aparentemente irremediável. Outro ingrediente, que não deve ser descartado, é a obviedade do anacronismo do sistema político daquela que até há pouco se apresentava ao mundo como modelo de democracia representativa. Mas esta distonia está longe de morar no cerne da questão.
O mesmo se aplica ao Brasil de hoje e ao possível Brasil de amanhã. Desde que assumiu o governo, coerente com seu passado e agora com as costas largas da sustentação dos generais, o ainda presidente Bolsonaro vem, impunemente, investindo contra as instituições republicanas, na expectativa de uma oportunidade de virada do jogo democrático, de que que, aliás, já esteve próximo.
O antídoto é o confronto ideológico. E este só será possível pela esquerda e a centro-esquerda, que, no entanto se encontra em recuo que se diz tático, mas que terminará por tornar-se estratégico, se não encontrar forças e argumentos para ocupar o posto de vanguarda que a história costuma oferecer-lhe, mas no qual não tem cadeira cativa.
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